domingo, 1 de outubro de 2017

Conheça a história do boiadeiro de 102 anos que viu Brasília crescer

Paraibano Severino José Barbosa chegou à Vila Planalto quando Brasília tinha um mês de vida e lá continua escrevendo a sua melhor história de vida, sem rabiscar uma linha.

A apenas três quilômetros do Palácio do Planalto, do poder que inebria e corrompe, há um bairro mais velho que a própria capital, a Vila Planalto, que completou 60 anos. Era o antigo acampamento dos operários que vieram construir a nova capital. Entre ruas estreitas, construções ainda de madeira, onde vivem menos de oito mil pessoas, mora um homem que, anônima e honestamente, é mais importante do que toda aquela gente de terno, eleita pelo povo, que gravita na Esplanada. 


Ele é miudinho, fala grave e sempre, todos os dias, veste-se elegantemente: calça social, camisa de manga comprida abotoada e uma caneta espetada entre um botão e outro, sempre a postos, pronta para ser usada a qualquer momento. O homem elegante mal passou das primeiras sílabas. Mas virou doutor formado pela vida e pela força, honesta, do seu trabalho. 

Ah, sim, esse homem de voz ainda firme já caminha para os 103 anos. Em junho passado, brindou os 102. Nas comemorações do centenário, em 2015, teve festa. Fechou-se a rua, no acampamento do Rabelo.

Severino José Barbosa é uma daquelas pessoas que a gente mal conhece e tem a impressão de que viveu sempre perto. Entrevista marcada. Na porta do restaurante de uma das netas, na Vila Planalto, lá estava ele. De calça social preta, camisa clara e sapatos pretos. Sim, a meia é cinza. Um lorde. Ereto, sem curvar a coluna, andando ligeirinho. Cumprimentos feitos, nos convidou para entrar. A prosa ia ser longa. Não se conta, nem se ouve uma história de 102 anos em meia hora. Muito menos pelo WhatsApp. É preciso ver. E sentir.
Ouvir a vida desse homem centenário é como viajar numa história da qual não participamos, mas de que nos tornamos cúmplices. Comoventemente cúmplices. E ela, essa história, começa longe. Lá num lugar chamado Umbuzeiro, na Paraíba. Severino ali nasceu. Filho de mãe e pai da roça, teve seis irmãos. Ele sabia que nada lhe seria fácil. Pelejou o que pôde. 

Casou-se cedo, contava pouco mais de 20 anos, com Maria Lopes, moça feita para casar. Moço disposto e mulher parideira, logo vieram os seis filhos, todos de parteira: Luís, Gentil, Noêmia, Marinete, Ivonete e Noíldes. Para sustentar a família numerosa, Severino foi trabalhar como boiadeiro. Comprava e vendia. Levava e trazia boiada de uma cidade para outra do sertão da Paraíba. Às vezes, chegava até Pernambuco. 

Comida nunca lhe faltou à mesa. “Nem roupa e calçado pros meninos.” Por anos, o sertanejo pelejou assim. Mas, um dia, ele percebeu que o ofício estava fraco. As dificuldades começaram a aparecer.

Mudança de vida 
Pelo rádio, ouvia umas notícias de que uma nova capital seria erguida no Planalto Central. Severino não sabia bem onde ficava aquilo, mas tinha certeza de que era bem longe de onde vivia. Ainda assim, intuiu que era o momento de recomeçar. Luís, um dos filhos, então com 18 anos, sentiu vontade de vir com o pai. Queria servir o Exército. E de lá partiram. Maria Lopes ficou na Paraíba com os outros cinco filhos.

A viagem foi longa. Além de uma mala de couro, tudo que trouxeram foram sonhos e incertezas. Chegaram. Encostaram-se exatamente na Vila Planalto, num assentamento. Era maio de 1960. Brasília tinha um mês de vida. Havia sonhos, esperança, terra vermelha e construção por todo lado. Fazia muito frio. Tudo o que Severino sabia era que a Paraíba estava bem longe dali.

Arrumou emprego como encarregado de obra na Esplanada. Mas ficou pouco tempo. Foi quando teve a grande ideia. Iria vender leite e pão para o povo da Vila Planalto. Como, se ele não tinha padaria? Severino, então, reinventou-se: sem nunca ter sido padeiro, nunca ter aberto uma padaria, tornou-se o padeiro e o leiteiro da Vila Planalto.

O paraibano comprou uma velha bicicleta e uma cesta enorme. Descobriu, enfim, como ganharia dinheiro. Saía de madrugada de casa, pedalava até a Asa Norte, pelo meio do cerrado e trilhas que nem existiam. Chegava lá e comprava pão e leite, que os moradores encomendavam. Detalhe: o leite vinha em garrafa de vidro. Anos depois, o saquinho plástico chegou.

Nas sacolas penduradas nos pregos, que ficavam estrategicamente na porta dos barracos de madeira, ele deixava a mercadoria. A maioria comprava fiado. Tudo anotado num caderno velho. Depois, como as encomendas cresceram, a bicicleta não lhe servia mais. Foi preciso comprar uma Vemaguet usada. 

Hoje, muita gente que passou dos 50 e até 60 anos se alimentou com o pão e o leite de Severino. E lhe agradece todo dia. Passear pela Vila Planalto com ele é certeza de popularidade. Todos o reconhecem. Cumprimentam-no. Abraçam-no. E alguns o chamam de “Severino do leite” ou ”Severino padeiro”. Ele ri. Sem nunca ter colocado a mão na massa, ele virou o padeiro mais importante da Vila Planalto, um lugar feito de sonho e resistência dos pioneiros. Ali, também abriu um bar. Qual o nome? Bar do Padeiro. Nada mais apropriado. E justo.

Novo amor
Severino seguia sua vida aqui. Voltou à Paraíba, para buscar a família. Era preciso juntar tudo de novo. Mas o casamento com Maria Lopes não andava bem. Resolveram se separar. Alguns filhos quiserem vir. Outros ficaram. E, assim, ele tocou a vida. Depois, como história de romance, numa das voltas à Paraíba, reencontrou Tiolina, irmã de Maria Lopes e sua ex-cunhada. A paixão foi instantânea. Casaram-se. E viveram a história de amor que a vida lhes reservou.

Seguiram a vida aqui, na Vila Planalto. Eram dois apaixonados. Não tiveram filhos. Ela o ajudava no Bar do Padeiro. Dançavam forró, em noites de festa. Faziam planos juntos. E pensaram ficar velhinhos juntos. “Foi minha companheira”, ele diz, com o olhar embaçado.

Há 30 anos, Tiolina morreu de diabetes. Até hoje, Severino chora quando fala ou se lembra dela. “Ele é muito emotivo. Chora muito”, diz Dalva Barbosa, 48 anos, a neta com quem ele mora há 15 anos. Os seis filhos de Severino lhe deram 26 netos. Os netos, 23 bisnetos. E os bisnetos fabricam tataranetos. A família só cresce.

Sem sua Tiolina, ele passa os dias bem-vestido. “Ele nunca usou uma bermuda. Nem fica em casa sem camisa. Só anda assim, arrumado. Depois que acorda, logo se apronta”, conta Dalva, a neta que herdou o dom de comerciante. Montou o Restaurante da Dalva, na mesma Vila Planalto onde o avô fez história, escrevendo cada capítulo com a honestidade de um homem que nasceu para ser assim. Tão raro hoje, sobretudo nas proximidades daquela gente do poder da Esplanada dos Ministérios. No restaurante da neta, ele virou “celebridade”. Todo mundo quer conhecê-lo, levar um dedo de prosa, tirar uma foto.

Saúde de touro 
Elegantemente, logo cedo, ele toma café. Café com leite — sim, com lactose. Severino não tem essas intolerâncias da modernidade. Come tudo. Sem diabetes, sem hipertensão, sem gripes, sem qualquer doença, o miudinho de 102 anos passeia todo dia pela Vila Planalto. Independente, vai sozinho, sem bengala. Anda firme, ereto, É impressionante o aperto firme que tem na mão. Só luta contra uma dificuldade: a pouca audição. Mas basta saber falar que ele escuta tudo. E sem aparelhos.

Ele conta histórias de quando “era mais moço”, lá na Paraíba, antes de se casar com a primeira mulher: “Numa noite, na festa, namorei quatro moças”. Ele jura de pé junto. Por isso, explica-se seu galanteio com as moças que encontra nas caminhadas diárias. Não se cansa de elogios.

Há três anos, voltou à sua Umbuzeiro. Reviu os poucos parentes e amigos que ainda estão vivos. Dos seis irmãos, ainda existem dois. Ele é o mais velho. E permitiu-se colocar uma bermuda para um banho de mar. Sentiu alegria de menino.

Uma vizinha de muitas décadas, ainda do tempo em que sua Tiolina era viva, é testemunha da saga de Severino e do amor dos dois, na Vila Planalto. “Uai, eu mesma criei meus três filhos com os pães e o leite que comprava do seu Severino”, diz a mineira Celina Quitéria Zeferino, 83. “Nossa Senhora, conheço a história desde o começo. Ele deixava o pão na sacola pregada na porta da minha casa. Depois que a Tiolina morreu, achei ele mais triste.”

O marido de Dalva, Givaldo de Souza, paraibano, 39, agradece ao homem que virou pai para ele. “Ele cuida de todos nós.” Severino talvez não tenha ouvido, mas sente o que aquela gente fala sobre ele. E ainda tem planos, a esta altura da vida: “Quero conhecer o estrangeiro”. Dalva, a neta, emenda: “Cuidar dele me faz muito bem. Ele é especial”. 

Passear com Severino pela redondeza é estar em ótima companhia. Ele é um astro. Homens adultos, gente que comeu do seu pão e bebeu do seu leite, de longe, berram: “Oi, Bil!”. Ele acena, sentindo-se acarinhado. Ao lado do campo de terra, que fica em frente à casa onde mora, ele desafia o repórter, com fôlego de menino peralta: “Vamos apostar uma carreira em volta do campo?” Recuso. Tenho juízo. Ele, com toda essa disposição, certamente ganharia.

No fim da entrevista, um momento comovente. Ele fixa o olhar no interlocutor e diz: “Se a gente morresse e levasse riqueza, vá lá. Mas o que a gente leva mesmo é terra na cara. E isso se achar alguém que jogue”. O homem que mal passou das primeiras letras arremata a conversa com inteligência e sabedoria impressionantes: “A gente aprende com a vida. E só leva daqui a amizade”.

Na Vila Planalto, há um homem miudinho, que se veste impecavelmente como se fosse à festa todo dia. Há um cidadão de 102 anos que vale a pena conhecer. Severino José é o cara.

Fonte: www.correiobraziliense.com.br

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