Medo aumenta cada vez mais entre moradores e quem trabalha na região. Casos como o da servidora morta na 408 Norte trazem à tona a sensação de que outras pessoas possam se tornar vítimas da criminalidade na área central da cidade.
Se as lâmpadas dos postes da comercial da 111 Norte não estivessem apagadas, a caminhada da atendente Daniela de Sousa, 20 anos, seria mais tranquila. Se houvesse policiamento nos estacionamentos da Universidade de Brasília (UnB), o trajeto até o carro dos estudantes de arquitetura Maitê Campos, 20, e Gabriel Loureiro, 21, seria menos tenso. A vigília da polícia também faz falta para a estudante de engenharia de controle Kyara Esteves, 35, que espera sozinha, tarde da noite, o ônibus passar, e para o professor de artes Pedro Filho, 42, que desce com os cachorros na 415 Sul após o trabalho. Conjugar a segurança pública da capital federal no futuro do pretérito revela como está a relação do brasiliense com a rotina da cidade.
O Plano Piloto abriga as sedes dos três Poderes, é morada das famílias com uma das rendas per capita mais altas do DF: R$ 5,5 mil, e é endereço de estudo e trabalho para um sem-número de pessoas. O perfil de grande metrópole não traz consigo, segundo quem vive ou passa pelo local, características que mitiguem a sensação de insegurança. Na última terça-feira, a capital assistiu atônita ao assassinato da jornalista e servidora do Ministério da Cultura (MinC) Maria Vanessa Veiga Esteves, 55 anos, na 408 Norte. O latrocínio (roubo com morte) escancarou o que há muito tempo os moradores reclamam: as asas Norte e Sul estão se tornando reféns do crime.
Apesar dos esforços das forças de segurança, as estatísticas mostram a manutenção da criminalidade. Os delitos deixam marcas indeléveis nas quadras desenhadas por Lucio Costa — que há algumas décadas eram sinônimo de quietude. Durante dois dias, o Correio levantou dados, histórias e buscou entender os motivos de uma das áreas com o metro quadrado mais caro da cidade ter se tornado palco de tamanha violência. Quem foi vítima carrega consigo o sentimento latente de insegurança. A palavra mais usada para definir a situação da cidade é medo — o termo apareceu 27 vezes no discurso dos entrevistados pelo jornal.
Os movimentos denunciam. As bolsas estão sempre pressionadas contra o corpo. Os motoristas põem de lado as regras de trânsito e furam o sinal vermelho. A regra é evitar becos, passagens subterrâneas e ruas isoladas. Daniela rasga a escuridão no fim da comercial da 111 Norte. As passadas largas são para burlar um possível ataque. A caminhada entre a padaria em que trabalha e o ponto onde passa o ônibus para Planaltina de Goiás, distante 66km do DF, dura cerca de sete minutos. “A única coisa que eu penso é em chegar viva”, conta a jovem. Em casa, o marido e o filho de seis meses a aguardam. “Fico pensando quando eu serei a vítima que as reportagens vão mostrar”, desabafa.
Indignação
Daniela não titubeia quando perguntada onde se sente mais segura: Planaltina de Goiás. “O Plano Piloto a cada dia se torna terra de ninguém. Somos surpreendidos com casos com mais violência e crueldade”, explica, ao se referir à morte de Maria Vanessa. A indignação faz com que ela suba o tom de voz. “Eu sou obrigada a andar com um celular antigo, R$ 20 e alguns cartões velhos numa carteira falsa para despistar bandidos. Eu só venho trabalhar aqui porque os salários são melhores, mas penso o quanto isso vale a pena”, conclui.
A reportagem começou por volta das 20h15 de quinta-feira, na Asa Norte e terminou às 1h05 da sexta passada, na Asa Sul. Porteiros, vigilantes e garis temem o que pode acontecer. Até o vigia está amedrontado. “Cada vez mais a morte, o espancamento e o horror chegam por coisas pequenas, sem valor”, critica o homem, que prefere não ter o nome e o local onde trabalha divulgados. Ele explica: “Já livrei morador de assalto, já impedi arrombamento de carro e corri atrás de um homem, com um pedaço de madeira, que tentou molestar uma moça. Não sei se podem me marcar e eu sofrer alguma represália”.
Quais seriam as alternativas para frear essa onda de violência? Por que a criminalidade tem assombrado o DF? Algumas respostas são dadas pelo consultor em segurança pública do Conselho Distrital de Segurança Pública (Condisp) George Felipe Dantas. Ele explica que a combinação de alguns fatores torna o criminoso uma granada de crueldade. “Pode parecer impossível, tanto identificar as causas como possibilitar a prevenção criminal, mas não é. O que precisa ser feito é perceber as ameaças e neutralizar as vulnerabilidades”, condena. A violência no DF se caracteriza por três fatores, segundo George: desigualdade socioeconômica, ausência de prevenção primária e a delinquência de jovens que iniciam cedo no mundo do crime.
Reféns
Passava das 23h quando a estudante de engenharia de controle Kyara Esteves de Sousa, 35 anos, aguardava o ônibus passar. Sozinha na parada escura, teve medo até da abordagem da reportagem. Assustou-se e fez como quem iria correr. Estava ali, na 513 Norte, após o culto de uma igreja evangélica. “Tenho medo, porque os crimes contra a mulher são mais truculentos. Estupram, torturam e matam para levar uma bolsa”, condena. Goiana, ela está há quatro anos na capital federal. Nesse tempo, viu a sensação de insegurança disparar. “As autoridades de segurança deveriam ser cobradas judicialmente a cada caso de violência. A realidade para quem não anda de carro blindado e não tem guarda-costas é muito dura”, defende.
A distância entre o Bloco A da 415 Sul, onde mora o professor de artes Pedro Filho, 42 anos, e o Palácio da Alvorada, onde despacha o presidente da República, Michel Temer, é de 9 km. De carro, são menos de 15 minutos. “Fico pensando como estará daqui a cinco anos”, reflete Pedro. Morador do Plano Piloto há 20 anos, sente que a região está esquecida. “Somos obrigados a vigiar os nossos passos, olhar para todos com desconfiança e ter um sinal de alerta ininterrupto”, salienta. Ele desce com os cachorros depois do trabalho, normalmente tarde da noite.
A maioria dos blocos visitados pelo Correio tem câmeras de segurança e mantém vigilantes terceirizados. Nem sempre é possível manter o serviço. O bloco de Pedro, por exemplo, está discutindo a possibilidade. Contudo, os condôminos não têm recursos financeiros para manter a vigilância particular. “A insegurança é algo que acompanha a gente. Dentro do apartamento já escutei gritos pedindo ajuda, vizinhos comentam o mais recente caso da quadra e os porteiros colecionam histórias de tentativas de diversos crimes”, acrescenta o professor.
Quatro perguntas para
Edval Novaes, secretário de Segurança Pública e delegado da Polícia Federal
Por que os índices de criminalidade mostram redução e a população na rua continua insegura?
A sensação de segurança independe da questão dos números propriamente ditos. Às vezes, a gente tem números em queda, que é o que está acontecendo neste momento, com a maioria dos números caindo, mas a sensação de insegurança eventualmente vem aumentando. Ela depende de várias outras coisas que não só a questão de polícia e de segurança pública. Então a iluminação influencia, a questão de você conhecer ou não o seu vizinho influencia, o barulho, também, assim como, eventualmente, a poda de árvore e o recolhimento do lixo. Uma série de outras questões interferem na sensação de segurança. Tanto é que a pesquisa de vitimização, onde há o percentual das pessoas que se sentem inseguras, reflete que nem sempre onde a gente tem os maiores índices de criminalidade são os locais em que as pessoas se sentem mais inseguras.
Mas os moradores já estão tomando precauções. Como o senhor avalia esse comportamento do brasiliense?
Todos nós precisamos nos policiar, obviamente. Porque há muitos crimes que são os chamados crimes de oportunidade. Se essa oportunidade acontecer, infelizmente, em algumas situações, o crime vai ocorrer. Então, se a gente puder evitar que isso ocorra, é o ideal.
De que forma as recentes baixas no efetivo da polícia têm interferido na segurança pública?
A polícia vem, de alguma maneira, se reestruturando administrativamente para fazer com que isso não atrapalhe o trabalho operacional. A Polícia Militar reestruturou seus batalhões, reduziu a parte administrativa e, com o aprimoramento do nosso sistema de ocorrências geográficas, ou seja, com o mapeamento melhor de que momento e onde os crimes estão acontecendo, ela vem aplicando de maneira mais pontual seu policiamento justamente para que o militar esteja na hora e no local onde esses crimes estão acontecendo. E é isso que está trazendo a redução dos índices de criminalidade, apesar de estarmos vivendo uma crise recessiva de alguns anos, que aumenta uma série de outros fatores que acabam piorando o trabalho da segurança pública, como o desemprego.
Apesar de os homicídios terem reduzido no acumulado do primeiro semestre, as tentativas de homicídio aumentaram entre janeiro e julho de 2017. Por quê?
Nós ainda estamos buscando respostas para isso. Mas, às vezes, nas tentativas de homicídio, nem sempre existe o ferimento. Portanto, é necessário avaliar cada uma dessas situações para se chegar a essa resposta. Mas esse crime já foi muito maior no mesmo período em 2015 e 2014.
Efetivo insuficiente nas ruas
A maior queixa nas ruas do Plano Piloto é a falta de policiamento. Os moradores do centro da capital têm razão. Há menos policiais que o necessário para fazer a segurança da cidade. Um levantamento da Polícia Militar mostra que 39,3% das vagas de praças combatentes, ou seja, servidores que trabalham diretamente no patrulhamento da cidade, não estão preenchidas. Até o mês passado, 10.055 homens faziam o serviço, quando o ideal, de acordo com a corporação, são 16.552 — 6,4 mil policiais a mais. Apesar do desequilíbrio, a Secretaria de Segurança garante que tem conseguido reduzir os índices de criminalidade.
Diante da repercussão da morte da jornalista e servidora do Ministério da Cultura (MinC) Maria Vanessa Veiga Esteves, 55 anos, na 408 Norte, o secretário de Segurança e delegado da Polícia Federal, Edval Novaes, esteve no Correio para debater a criminalidade. Ele ressaltou a queda de alguns delitos e frisou ganhos para a cidade. Criticou a “exploração” de alguns casos e a evidência que a imprensa dá às estatísticas ruins. “A segurança é responsabilidade do poder público, mas, também, tem de ser exercida por todos nós. Independentemente do deficit no efetivo, a polícia vem cada vez mais se reinventando e atuando com inteligência e assertividade, cumprindo seu papel”, destaca.
A defasagem de policiais, segundo Novaes, não interfere na sensação de insegurança. “Há cinco anos nós estamos reduzindo os casos de homicídios. Ano passado, nós fechamos em 19,7 homicídios para cada 100 mil pessoas. Este ano, estamos abaixando mais ainda e devemos fechar abaixo dos 16 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Devemos estar entre a terceira ou a quarta unidade federativa do país com menor taxa de homicídio”, ressaltou (leia Quatro perguntas para).
Durante as mais de quatro horas em que a reportagem percorreu as asas Norte e Sul, quatro carros da polícia foram vistos. Às 21h5, uma dupla de policiais estava na comercial da 310 Norte. Às 22h05, outro carro da corporação ficou estacionado na 507 Norte. Depois, às 22h30, um terceiro cruzou o Eixinho Norte. Por último, às 22h50 PMs faziam ronda na 210 Norte. Nenhuma equipe foi vista na zona central e na Asa Sul. Contatada pela reportagem, a PM respondeu, em nota, que as atenções do policiamento são voltadas para as áreas de maior incidência criminal. “A Polícia Militar, dentro dessa sistemática, faz-se presente durante as 24 horas do dia nas ruas do Distrito Federal”, destaca.
No Plano Piloto, o 1º Batalhão e o 3º Batalhão estão à frente dos trabalhos. A PM justifica que o emprego do policiamento visa à redução do índice de criminalidade e promove a segurança da população. “A segurança pública envolve, no entanto, a atuação de outros órgãos. Fatores diversos contribuem para a insegurança da população. Nesse contexto, a reincidência tem sido um dos maiores problemas no combate à criminalidade. Hoje, prende-se o criminoso, mas este não tarda a retornar às ruas e volta a cometer os mesmos delitos, sendo que alguns chegam a ter de 20 a 30 passagens pela polícia”, completa o texto.
“Impotência”
Roubo a pedestre, roubo a comércio, tráfico de drogas e estupro são os crimes mais registrados no Plano Piloto. Um dos casos, é o de uma jovem de 18 anos, que, em março, viu uma amiga de 19 ser estuprada por um motoqueiro na 609 Norte. Um mês antes, ela havia sido roubada no mesmo local: uma parada de ônibus. Na sexta-feira, a mãe da jovem falou sobre o drama que a vida se tornou após o crime. “Somos obrigados a viver trancados em casa ou contratar uma escolta”, lamenta a moradora do Recanto das Emas. Depois do estupro da amiga, a jovem, que foi criada na Asa Norte, abandonou a capital federal. Hoje, vive em Alto Paraíso de Goiás (GO), distante 246km do DF. “A sensação que fica é de impotência.”
O cenário pessimista, para o consultor em segurança pública George Felipe Dantas, não deve mudar em curto prazo. Uma das prioridades, explica o especialista, é manter a presença da polícia nas ruas. “As ameaças correspondem, pessoalmente, aos chamados ‘agentes motivados’, que são potenciais agressores ou delinquentes, e às vulnerabilidades buscadas por eles, que são os ‘pontos fracos’ dos alvos, que são as pessoas ou coisas. Isso implica uma atitude defensiva sistemática”, pondera.
Receio no câmpus
O lugar é escuro, pouco policiado e distante de aglomerações ou espaços movimentados. O estacionamento da Universidade de Brasília (UnB) expõe estudantes a riscos extremos. O lugar é um recorte que evidencia o que acontece no restante da cidade. São vários os relatos de assaltos, roubos, tráfico de drogas e abuso sexual. Na última quinta-feira, a reportagem acompanhou dois estudantes na saída da aula. Passava das 22h30 quando Maitê Campos, 20, e Gabriel Loureiro, 21, do 7º semestre de arquitetura, deixaram o Instituto Central de Ciências (ICC Norte).
A regra é sair em dupla, trio ou na maior quantidade de gente possível. Logo na saída do prédio, um homem aparentava se esconder atrás de árvores. Os estudantes esperam aumentar o volume de gente saindo da faculdade. Ela mora no Sudoeste. Ele, em Vicente Pires. Sabem que, quanto mais demorar, maior é o risco. De cabeça, contaram seis casos de assalto a colegas. “Ficamos reféns do que pode acontecer no estacionamento. A situação está saindo do controle de tal forma que até durante o dia está arriscado”, conta Maitê.
A caminhada começa. São cerca de cinco minutos até o carro. Antes de chegar ao veículo, outra barreira. Um segundo homem está abaixado e parece usar drogas. Os estudantes apressam o passo. Ficam ofegantes e protegem as bolsas e mochilas com os braços. “Deveria haver mais policiamento aqui. A sensação que tenho é que estamos abandonados à própria sorte. Não tem iluminação, monitoramento por câmeras e não vemos policiais”, critica Gabriel.
Já no carro, os jovens preparam-se para deixar a UnB. A entrada no veículo é rápida. “Não se pode bobear”, brinca, um pouco mais aliviada, Maitê. Eles vão embora e, em instantes, aparece uma viatura da vigilância privada da universidade. O motorista conta que o foco do trabalho da equipe é vigiar o patrimônio da UnB, mas que, na medida do possível, observa os estudantes e comunica à polícia qualquer transtorno.
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